UM DIA, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a
música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela
constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não
quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.
0 violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em
forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina
— viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a
mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves,
cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não
ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de
caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino,
mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.
Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como
negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais;
como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes
excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas
mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e
com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em
posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar
obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.
Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela
frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de
meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva
todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um
Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos
de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos
dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter,
quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado
na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do
Esqueleto.
Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes
mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus
mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de
tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na
maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos
braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele
a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do
contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.
Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo?
Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um
bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então
(direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre
os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de
entender a Lua.
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