sexta-feira, 23 de abril de 2010

Notas esparsas sobre Alice - José Geraldo Couto

Tim Burton embaralhou em seu filme personagens, ambientes e situações dos dois livros de Lewis Carroll protagonizados pela menina Alice: No país das maravilhas (1865) e Do outro lado do espelho (1871).

As perguntas que se impõem são: 1) por que ele fez isso? 2) como fez isso? 3) o que resultou disso?


Minha hipótese, que articularia, ainda que precariamente, as três questões, é a de que o cineasta quis dar um sentido crítico e contemporâneo às fabulações do escritor britânico e de que fez isso potencializando os procedimentos intelectuais e estéticos do próprio Lewis Carroll.


Deslocamento e condensação

Justificado pelo fato de que Carroll constrói seus livros como dois longos sonhos, Burton usa e abusa das operações de deslocamento e condensação que constituem a base da linguagem onírica. Se nos sonhos os elementos da "vida diurna" mudam de lugar e se fundem uns com os outros, o cineasta faz o mesmo com o próprio universo criado pelo escritor, saqueando e manipulando a seu bel-prazer os personagens e situações presentes nos dois livros - e incorporados de múltiplas maneiras ao imaginário ocidental no último século e meio.

Assim, por exemplo, estão no filme os soldados do exército de cartas (do primeiro livro), mas eles obedecem à rainha vermelha (do segundo livro), e não ao rei e à rainha de copas. Seria cansativo (sobretudo para o leitor) elencar aqui todos os lances desse tipo, e a bem da verdade eu não seria capaz de fazer isso, pois não sou profundo conhecedor da obra de Carroll.

Wonderland = Underland

Burton reforça em seu filme o espírito lúdico das obras originais, multiplicando em ritmo alucinante as tiradas de non-sense, os jogos internos, os trocadilhos verbais e visuais. Mais do que isso, enfatiza uma ideia apenas esboçada em Lewis Carroll (escritor pré-freudiano, é bom lembrar), a de que o país das maravilhas (wonderland) é, na verdade, o mundo subterrâneo (underland). Ou seja, o mundo da fantasia é o mundo do inconsciente, ou do subconsciente, daquilo que é soterrado pela consciência, pela vigília.

A Alice de Tim Burton, já adulta, mistura em suas lembranças eventos ocorridos na infância com retalhos de sonhos e pesadelos. No magma impreciso que forma a memória afetiva, as imagens e sons da vigília têm a mesma espessura, a mesma densidade, daqueles do sonho e da imaginação.

Assim como a Alice do filme, aos 19 anos, retorna ao País das Maravilhas, que ela acreditava existir apenas em seus sonhos, o filme atual revisita o universo de Lewis Carroll buscando atribuir um sentido, uma ordem possível, a sua miríade de elementos.

Um conto de emancipação

Todas as grandes mudanças introduzidas por Tim Burton nas histórias originais têm, a meu ver, um objetivo central: dar à saga de Alice um sentido de emancipação feminina. É por isso que no filme ela já é uma moça de 19 anos, no limiar da vida adulta, é por isso que ela é escalada como a guerreira da rainha branca para vencer com a espada o monstro Jabberwocky.

O prólogo e o epílogo, ambientados no "mundo real", ou seja, na superfície, ressaltam o sentido feminista-libertário do filme.

Pois logo de início a jovem Alice é confrontada com a sina que a espera: casar-se com um bom moço da nobreza e ser uma dama do lar. A fuga assutada a esse destino coincide com a queda no mundo subterrâneo, que por vias retorcidas vai ajudá-la a se conhecer e iluminar seu caminho no mundo.

No começo da história Alice é simplesmente uma moça inquieta, que não se encaixa no modelo social e comportamental reservado a ela na sociedade vitoriana (assim como a Alice dos livros era só uma menina curiosa e imaginativa). Seu signo é o do desajuste, da inadequação. É no wonderland/underland que ela vai aprender a transformar esse handicap em vantagem, a se metamorfosear de menina em mulher, assim como a Lagarta Azul se transmuta em borboleta - a última imagem do filme, voando em 3-D em direção à plateia.

Não é casual o fato de que a grande tarefa exigida de Alice - matar o monstro - é uma ação heroica eminentemente "masculina" na cultura tradicional. E ainda por cima com o uso da espada, símbolo fálico por excelência. A princípio com relutância, a moça acaba por concordar em "roubar" o papel que seria do homem, em ocupar o seu espaço. A propósito: chama a atenção a ausência dos reis, branco e vermelho. Onde estão os homens nesse país das maravilhas?

O novo homem?

É aí que entra o personagem complexo e intrigante do Chapeleiro Maluco. Muita gente criticou, com certa precipitação, o fato de o Chapeleiro ter adqurido no filme um destaque tão grande ou até maior que o da protagonista. Mas isso certamente tem uma razão que vai além do carisma de Johnny Depp e da sua profunda afinidade com o diretor Tim Burton.

O Chapeleiro composto por Depp é, de certo modo, o contraponto ideal, complementar, à Alice emancipada do filme, carecendo de alguns atributos convencionalmente atribuídos ao homem. É corajoso e solidário, mas não bruto, nem competitivo. Tem algo de feminino em sua doçura, em sua atenção à aparência. Em certos momentos, parece mais um cabeleireiro do que propriamente um chapeleiro. Acima de tudo, há nele uma admiração pela nova mulher maravilhosa, mesclada com uma certa perplexidade e uma indisfarçável melancolia.

Fonte: http://blogdozegeraldocouto.folha.blog.uol.com.br/arch2010-04-18_2010-04-24.html


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