segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Thiago de Mello - CANTO DE COMPANHEIRO EM TEMPO DE CUIDADOS

Contigo, companheiro que chegaste, 
desconhecido irmão de minha vida, 
reparto esta esmeralda que retive 
em meu peito no instante fugitivo 
mas infinito em que se acaba a infância, 
porque a esmeralda não se acaba nunca. 

Reparto, companheiro, porque chegas 
a este caminho longo e luminoso 
mas que também se faz áspero e duro, 
onde as nossas origens se abraçaram 
dissolvendo-se em paz as diferenças, 
engendradas na vida pela força 
feroz com que desune o mundo os homens 
que feitos foram para cantar juntos 
porque só juntos saberão chegar 
para a festa de amor que se prepara. 
Porque tudo é chegar, meu companheiro 
desconhecido, meu irmão que plantas 
o grão no escuro e nasce a claridão. 

É chegar e seguir, os dois cantando, 
os dois e a multidão num só caminho, 
em direção ao sol que nos ensina 
a ser mais cristalinos, parecidos 
ao menino que fomos e que somos 
de novo dentro do homem, desde que o homem 
seja capaz de repartir seu canto 
e um pedaço de sol bem luminoso 
a esse desconhecido ser que chega 
sem nada: traz apenas a esperança 
de ver o amor de perto. E sem ter canto 
no peito machucado, de repente 
de coração contigo vai cantando, 
e vai na vida, a vida desgraçada, 
achando uma fé nova enquanto um gosto 
de também repartir-lhe sobe na alma: 
está no seu caminho e então reencontra 
o menino que foi, quando a esmeralda 
perdida no seu peito resplandece 
de amor geral que se reparte e cresce. 

Não sei se canto claro, companheiro. 
Em tua vida vive o o povo inteiro: 
antes jamais te vi, mas te sabia 
perto de mim, quando aprendi na dor 
da queimadura do noturno mundo, 
que se alçava voraz contra a alegria 
e entranhas devorava e em fome e febre 
enrolava a vergonha das mulheres 
e pela mão levava sob a lua, 
de enferma claridade, as ambulantes 
manchas de riso em cujo fundo a infância 
era uma rosa sórdida já murcha. 

O tempo é de cuidados, companheiro. 
É tempo sobretudo de vigília. 
O inimigo está solto e se disfarça, 
mas como usa botinas fica fácil 
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso 
que pisa as forças claras da verdade 
e esmaga os verdes que dão vida ao chão. 
O tempo é de mentira. Não convém 
deixar livre o menino da esmeralda. 
Melhor é protegê-lo da violência 
que amarra a liberdade em pleno vôo. 
A sombra já desceu, e muitas fauces 
famintas se escancaram farejando. 
Cuidado, companheiro, esconde a rosa, 
espanta a mariposa colorida, 
é perigosa esta canção de amor. 

Cada um no seu lugar, na sua vez, 
não descuidar na espreita do inimigo, 
que não dorme jamais e é cheio de olhos. 
E derramar a luz, no instante certo, 
sobre a garra soturna do seu rosto. 
É uma espera que dói, mas o que vale 
é ter o coração por cidadela, 
acender uma tocha em cada metro 
de terra conquistado e trabalhar 
melhor, para que o chão floresça mais 
e o trigo erga bem alto o seu pendão 
para a festa de amor, larga e geral, 
onde a fome afinal não vai dançar, 
porque não comerão somente eleitos, 
porque são todos os que comerão. 
É por isso que estamos todos juntos: 
a nossa força tem o sortilégio 
da seiva torrencial da primavera, 
e o nosso amor palpita como os ímpetos 
das águas amazônicas profundas. 

É cantar, companheiro, e repartir 
o que é preciso ser do amor geral. 
Ninguém será sozinho nunca mais, 
nem na solidão, nem no poder. 

Sempre contigo irei, e é quando canto 
que te defendo, e deito em tua lâmpada 
um azeite que dura a treva inteira 
nesses tempos de cinza em que a vigília, 
espada em flama erguida como a rosa, 
só poderá cessar quando outra vez, 
envergonhada, regressar a aurora, 
que vai lavar de luz o chão amado, 
e seremos de novo e simplesmente 
meninos repartindo as esmeraldas.

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