segunda-feira, 17 de março de 2008

Cecília Meireles - Cânticos (fragmentos)


Dize:
O vento do meu espírito
Soprou sobre a vida.
E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...


II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queira ser o amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És Tu.

III

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

IV

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a misériade ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele é tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

VI

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

VIII

Não digas: "o mundo é belo"
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: "o amor é triste"
Que é que tu conheces do amor?
Não digas: "a vida é rápida"
Como foi que medistes a vida?
Não digas: "eu sofro"
Que é que dentro de ti és tu ?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?

IX

Os teus ouvidos estão enganados.
E os teus olhos.
E as tuas mãos.
E a tua boca anda mentindo
Enganada pelos teus sentidos.
Faze silêncio no teu corpo
E escuta-te.
Há uma verdade silenciosa dentro de ti.
A verdade sem palavras
Que procuras inutilmente,
Há tanto tempo,
Pelo teu corpo, que enloqueceu.

XII

Não fales as palavras dos homens.
Palavras com vida humana.
Que nascem, que crescem, que morrem.
Faze a tua palavra perfeita.
Dize somente coisas eternas.
Vive em todos os tempos
Pela tua voz.
Sê o que o ouvido nunca esquece.
Repete-se para sempre.
Em todos os corações.
Em todos os mundos.

XIV

Eles virão oferecer o ouro da Terra.
E tu dirás que não.
A beleza.
E tu dirás que não.
O amor.
E tu dirás que não, para sempre.
Eles te oferecerão o outro d'além Terra.
E tu dirás sempre o mesmo.
Porque tu tens o segredo de tudo.
E sabes que o único bem é o teu.

XVI

Tu ouvirás esta linguagem,
Simples,
Serena,
Difícil.
Terás un encanto triste.
Como os que vão morrer,
Sabendo o dia...
Mas intimamente
Quererás esta morte,
Sentindo-a maior que a vida.

XXIII

Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.

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